Fitava o teto.

Sentia vontade de fumar, mesmo tendo parado anos atrás.

Sentia vontade de beber, mesmo tendo bebido ontem.

O eterno clichê da mente vagando era ali perfeitamente aplicável. Como se tergiversasse consigo mesmo em um tedioso diálogo interno.

Ainda assim não estava inquieto. Não era nenhum Raskólnikov.

Em algum lugar na vizinhança um cachorro gania num lamento levemente irritante.

Resolveu sair.

Desistiu.

Sentiu uma leve pontada de excitação ao pegar o celular (pela milionésima vez) e discar o número dele.

Pela milionésima vez não ligou.

Arrebanhou toda a força de vontade de que dispunha naquele momento e sentou-se na cama. Queria dar um tiro no ouvido. Ou na boca, para maior efeito dramático, mas não tinha uma arma.

Pensou em comprar uma arma, mas não tinha dinheiro.

Então se reduzira a isso. Uma bicha velha e gorda, chorando pitangas por um michê que não tinha condições de bancar.

Toda e qualquer fantasia de Oscar Wilde agora morta e enterrada.

Resolveu-se enfim: Nada mais de correr atrás, nem se humilhar por esse amor desvairado. Sairia de cena dramaticamente. Iria tomar todos os comprimidos que encontrasse no armário do banheiro e morrer de overdose, deixando um bilhete suicida de amor rasgado e brega como uma canção de Jacques Brel.

Tomou dois rivotril e foi dormir.

Antes, mandou um sms “saudades”…

Você não é você.

Você é a sua roupa sua conta bancária seu emprego seu status seu carro sua casa.

Você é o que seus pais esperam de você. O que seu vizinho espera de você. O que a “sociedade” espera de você.

Mesmo quando faz o que gosta, você não é você. Porque você faz o que você gosta para ganhar dinheiro e ser bem sucedido e mostrar pros seus pais pro seu vizinho e pra “sociedade” que você consegue fazer o que gosta e mesmo assim ser exatamente o que eles esperam exigem e ordenam que você seja.

Você nasce livre e em toda parte lhe põem grilhões.

E você abraça esses grilhões e a eles chama de sucesso.

Chama de realização.

Chama de vida.

Porque é isso que te dizem que é a vida.

Uma vida onde você não é você.

Mas, na verdade, você não é você porque não quer.

Você não é você

Por medo de ser…

Andava pela rua de cabeça baixa.

Preocupado com dinheiro.

Contas.

Supermercado roupas calçados viagens lazer comida bebida amizade namoro transporte saúde educação.

Para tudo que lhe vem à cabeça, uma única coisa fundamental:

Dinheiro.

Caminhou de cabeça baixa pensando em dinheiro por tanto tempo que a vida passou por ele.

E ele nem percebeu que ela, a vida, era gratuita…

Ela dormia nua.

Sua pele era de um tom moreno claro. Cabelos pretos lisos. Rosto de menina.

O sono era leve. Tranquilo.

Ele a observava em silêncio. Dentro do coração o amor do mundo. E a tristeza já doída com a certeza da despedida de logo mais.

Parecia ainda grudar no seu corpo o cheiro doce da pele dela. O gosto daquela boceta, pequena e bela flor, não saia da boca dele, e isso ainda o excitava, horas depois do sexo.

Apagou o cigarro no cinzeiro ao lado da cama.

Deixou o dinheiro no lugar de sempre e saiu sem fazer barulho.

Mais uma vez partiu sem saber se deveria matar aquela puta ou pedi-la em casamento…

Correndo com tesouras

Ontem senti aquele tipo de frio que gela a alma.

E nem estava frio.

Acho que é uma questão de perspectiva crer em deus ou crer-se deus.

Já o diabo, coitado, ninguém quer ser.

A gente se oprime querendo ser mais ter mais ver mais subir ganhar voar.

O elogio e a ofensa são em que tão diferentes, passageiros igualmente…?

Se você tem do que se gabar, então você não tem do que se gabar.

São tantos os pecados a serem evitados, mas ainda assim prefiro evitar as virtudes, que a santidade em nada me inspira.

Não acredito que de sábio e louco ninguém tenha um pouco, nem ao menos me interessam 15 minutos de fama, embora o anonimato não me pareça em nada também genial.

Passam os dias como se nada houvesse de melhor que perseguirmos nossas caudas e no fim das contas nem valeu a pena sair do mar pra isso.

Eu só quero saber…

Eu poderia escrever um poema inteiro sobre os teus lábios mas seria chato

chato chato

como todo poema

contado

esse lenga lenga

de amor cantado

e tanto verso e dor e rosa e sonetos desesperados

como se disse alguma coisa sobre coisa alguma

ainda mais que ninguém vai ler

nem você…